Seu Aroldo devolve a fotografia a um prego na parede da estação centenária e abre a memória em largos gestos de braços ossudos e compridos para contar que começou a trabalhar como mecânico na estrada de ferro aos 14 anos. Aos 84 anos, tem um andar de passos miúdos, mas locomove-se sem dificuldades, vai a um lado e outro tangido pelo desejo de contar, de mostrar, de pintar em tintas vivas um passado que excede as cercanias da memória e se derrama pela antiga plataforma de embarque e desembarque.
O tempo, como uma criança travessa, faz brincadeiras com esse homem octogenário. Enquanto ele lembra de épocas passadas e antigas ocorrências, o cenário de agora é praticamente o mesmo do passado. O sólido concreto dá forma e substância aos amplos vãos livres encimados por cumeeiras altas, principal cartão postal da cidade, onde arquitetura e memória formam um amálgama atemporal. Se uma lembrança escapa, e brinca, e gira e grita notícias fresquinhas de 70 anos passados, não há como acusar o tempo de falso testemunho. Tudo ali se presentifica, até as horas quentes e abafadas do verão imitam o transcurso de janeiros da antiga mocidade desse homem.
Não há melancolia nos seus olhos negros. Mas um contentamento que não põe reparo nas vicissitudes. Para si, o tempo deixou de ser o rio de Heráclito e tornou-se um remansoso lago onde os acontecimentos flutuam completamente livres. De modo algum ele se confunde como os desmemoriados. Consegue estabelecer uma linha do tempo, organizar as datas, ver as longitudes e ter perspectiva. Mas o que gosta mesmo é mergulhar na represa da memória e banhar-se nas águas do tempo como se a qualquer momento o trem fosse apitar na curva, chegar fazendo estardalhaço e parar na estação em meio à bruma da caldeira fervente, despejando elegantes passageiros de sobrecasaca.
JOEL GEHLEN
fonte: Jornal A notícia
10 de janeiro de 2013. nº 1732
fonte: Jornal A notícia
10 de janeiro de 2013. nº 1732
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